O DILEMA ENTRE DITADURA E ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO

No momento em que a humanidade se prepara para celebrar os 73 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, os direitos humanos em Angola continuam a não ser garantidos e sofrem de muitos atropelos do ponto de vista legal e político. Embora, na teoria, não seja uma ditadura, na prática “Angola” tem um dos sistemas mais autoritários do mundo. Há cada vez mais vozes a clamar por mudanças radicais, mas João Lourenço (JL) não está pelos ajustes.

Por José Marcos Mavungo (*)

Com os 73 anos da Declaração Universal do Direitos Humanos (DUDH), e após 45 anos de admissão de Angola nas Nações Unidas, os angolanos deveriam sentir-se livres ou, pelo menos, em condição de verem o sol da justiça raiar sobre uma terra onde se ergue a Cidade ou país, onde já não se repetem as leis e costumes coloniais. E, neste 10 de Dezembro de 2021, a celebração dos 73 anos da DUDH seria celebrada com cânticos de um país cuja organização e regras de vida anunciariam uma sociedade melhor que faça dos cidadãos homens felizes.

Porém, não há como negar e as evidências são cada vez maiores: a observância da lei e a ordem pública em Angola deixam muito a desejar. A consagração formal do modelo democrático e de direito é apenas formal, uma vez que, na prática, consolida-se uma governação política autoritária, mas de tal maneira exuberante que, ao pé daquele que lhe governa, o cidadão parece um escriturário murcho e sem imaginação, submetido à corrupção, despotismo e inépcia política.

O país enfrenta um profundo colapso das instituições de Estado de direito democrático, que têm vindo a agravar as condições morais e sociais da vida dos cidadãos. As políticas de “combate à corrupção”, “o autoritarismo” e “promoção dos direitos humanos” estão longe de ser realidade.

O desrespeito pela vida dos cidadãos, as perseguições de presos políticos (em especial em Cabinda), a diabolização da oposição e o uso das instituições do Estado, como os serviços de inteligência, tribunais e imprensa para interferir na vida política da oposição constituem sinais evidentes do retrocesso do estado democrático de direito.

Ultimamente, em especial nos primeiros dois anos sob João Lourenço, pareceram existir sinais anunciadores de mudanças, a julgar pelas declarações de JL, como “marimbondos” e «combate serrado contra a corrupção», bem como pelas «exonerações ou detenções» de familiares biológicos e próximos de José Eduardo dos Santos. Também, o processo de mudanças pareceu predicar uma política menos repressiva por parte do regime, sobretudo na sequência do «pedido de perdão» pelas vítimas de 27 de maio de 1977. Assim o reconheceram, inclusivamente certos meios políticos, e até mesmo do activismo angolano e do mundo.

Porém, a evolução da situação é bem mais grave e séria do que se pensa. O que está a se passar em Angola é duro demais para todos, sobretudo pelo facto de que não se lutou 14 anos para se merecer a actual ditadura; nem tão pouco faz sentido o paradoxo da abundância em Angola.

Nota-se cada vez mais cidadãos insatisfeitos com o funcionamento da democracia, uma situação que está a piorar e que marca uma tendência preocupante. O inquérito levado a cabo pela CEO da Afrobarometer indicou, em Outubro último, que somente 17% dos inqueridos se consideram satisfeitos com o funcionamento do regime democrático nacional angolano. É a primeira vez na história da democracia angolana que se assiste a uma insatisfação deste nível, cujos efeitos tendem a ganhar proporções de bomba-relógio tendo em conta o incremento da contestação e a incansável difusão de denúncias nas redes sociais.

A contestação popular dirige-se sobretudo ao actual clima de hostilização da oposição, objectivando a criação de condições para o funcionamento normal das instituições do Estado de direito democrático.

Recentemente, a Igreja que, de um tempo para cá, enfrentava timidamente o lado sombrio do regime, já tem vindo a levantar voz, em especial a nível de uma nova geração de Bispos. Além disso, um grupo de embaixadas europeias sediadas em Luanda avançou ultimamente com o pedido de resolução sobre Angola.

Mas parece que para João Lourenço, as críticas passam-lhe ao lado. O chefe de Estado angolano pensa que as mudanças propostas o deixam vulnerável, protegendo somente a oposição que põem em causa a inépcia política e os ganhos exuberantes dos oligarcas angolanos proporcionados por décadas de anarquia na administração do aparelho de Estado. Deste modo, o famoso slogan reformista não passa das pretensões eleitoralistas.

Assim, o regime continua no dilema entre os tempos de guerra e os atuais de paz, entre a democracia e a ditadura, entre a miséria e a prosperidade, entre as exigências reformistas e o status quo.

Mais grave: a actual repressão é idealizada por políticos que foram perseguidos pela PIDE-DGS ou, pelo menos, tiveram familiares presos e perseguidos pelo fascismo e eles próprios manifestavam uma vontade patética de modificar esta condição alienante e de orientá-la em direcção a um país cuja razão de ser consiste em não reproduzir as leis e costumes da colonização donde partiu a luta de libertação.

A respeito desta nova Angola onde os cidadãos esperariam descobrir as coordenadas de uma sociedade melhor, Agostinho Neto escreverá a “Sagrada Esperança”, obra de um sujeito poético que parece bastante comprometido com a humanidade das acções e dos pensamentos. O autor da “Sagrada Esperança” chegou a se apresentar como aquele “por quem se espera”, indicando que seria dele a responsabilidade de resolver o problema colonial.

Porém, este salto qualitativo não se verificou na vida dos angolanos, todas as formas de acção do regime nestes últimos 46 anos foram afro-estalinistas que guindaram uma classe política dominante a impor a maioria uma tarefa pouco menos que servil.

Infelizmente não podemos atribuir a tão vil condição atual a um descontrolo dos homens do regime «en place». É reveladora de atitudes camaleónicas e de vicissitudes históricas, próprias a dirigentes preocupados em jogar as suas cartadas pessoais e em fazer de Angola propriedade de um poderoso grupo fechado a que só têm acesso os magnatas do regime, que dispõem do sangue de que vive toda a economia do país.

Daqui que a «ideia de mudanças» tão propalada pelo regime não seja efectivamente senão apetite verbal, como as melodias musicais. Na suposta detenção de próximos de JES não está a preocupação de sepultar o absurdo de um sistema que arruinou Angola, mas JL está apenas tentando obter ganhos políticos da actual tragédia angolana decorrente de irracionalidades políticas durante décadas.

Para a classe que governa Angola desde sua acessão à independência, a vida política é um banquete que não se deseja abandonar senão quando se sentisse na incapacidade de governar por razões de saúde ou no máximo submetida à lei da morte. Por esta razão, nestes últimos 46 anos, ouve-se frequentemente: «Este país tem dono».

Por isso, a governação destas mais de quatro décadas de independência é semelhante ao reinado cruel de Abimelec de que nos fala a Bíblia Sagrada na parábola de Jotam (Jz 9, 7-15), que sublinha a “tolice criminosa” do filho bastardo de Gedeão que se apresenta desejando o cargo de rei de Israel, e para isso mata todos os seus 70 irmãos (filhos legítimos de seu pai), para que não houvesse concorrentes.

Mais de quatro décadas de regime militar, de falta de alternância, de atropelos aos valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, deixaram Angola em desgraça, ficou mais subdesenvolvida e tornou-se um dos países mais pobres de África.

Actualmente as estatísticas contam a história: incidência da pobreza nacional de 54%, ou seja, mais de cinco em cada 10 angolanos são multidimensionalmente pobres (com incidência de 87% em meio rural, em especial no Sul de Angola) (Fonte: INE, Pobreza Multidimensional em Angola, Julho de 2020, p.12) vive abaixo do nível da decência física, em casas caindo aos bocados, alimentando-se mal, dispondo de insuficientes cuidados médicos, sem água potável nem luz, e com poucas oportunidades para se educar.

O Estado de Direito Democrático não se dá em monopólio a nenhuma raça, a nenhuma classe política nem sequer a nenhum poderoso grupo social determinado. Em épocas de mudanças como as que estão sendo reclamadas em Angola, há que estar atento a esta eventualidade – o Estado de Direito democrático não tem fronteiras que limitam os direitos de cidadania aos não detentores do poder, dispõe de regras de convivência democrática a que todos devem se submeter.

A política só é grande, quando subordina a sua empírica estratégia de oportunidade à visão panorâmica duma racionalidade institucional que instaure o sonho de justiça, fraternidade e liberdade da Declaração Universal dos Direitos Humanos, do qual se inspiraram as ideologias das independências das sociedades contemporâneas, em especial africanas.

A manutenção dos atuais abusos de poder, que coloca a classe política dominante acima da lei, vai acentuar os atuais problemas de ineficácia na acção governativa e do crescendo de injustiças e exclusão social que o país enfrenta.

O caminho certo e coerente com a mentalidade do estado de direito democrático passa por instituições fortes que resistem a pretensões individualistas de governantes ditos redentoristas, mas explorando e oprimindo aqueles que dizem governar com equidade.

(*) Activista dos Direitos Humanos

Nota. Todos os artigos de opinião responsabilizam apenas e só o seu autor, não vinculando o Folha 8.

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